FAGUNDES, Marcelo Gonzalez Brasil. Fragmentos de uma história Panhĩ: história e território Apinajé na longa duração. 2022. 397 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2022.
Esta pesquisa investiga a história Apinajé, considerando-a em uma perspectiva de longa duração. Insere-se no campo de estudo da História Indígena e nos fundamentos metodológicos da etno-história. A investigação considera a relação intrínseca entre história e território para os povos indígenas e propõe observar a formação, a luta pela consolidação e manutenção de seu território. Analisa as histórias de origem a partir das significações dadas ao território, percebendo-as como uma forma de escrita da história. Os elementos da paisagem – petróglifos, cavernas, serras e rios – estão imbuídos de significado histórico. A pesquisa constata que a língua Apinajé possui uma origem comum às línguas Mẽbêngôkre, e que estas seriam uma cisão mais antiga das línguas Timbira. A partir das investigações arqueológicas ao longo da bacia do rio Tocantins, indica a presença de uma tradição arqueológica Tupiguarani na região de confluência dos rios Araguaia e Tocantins e analisa as evidências arqueológicas vinculadas à tradição ceramista Aratu, identificada com os povos falantes de língua Jê. Destaca a necessidade de um olhar diacrônico para a cultura material dos povos Jê como forma de pensar a história indígena de longa duração. A partir de uma análise da documentação escrita, produzida pelos cronistas entre os séculos XVII e XIX, a pesquisa procura perceber a dinâmica do processo de ocupação dos Jê setentrionais no interflúvio e a distinção entre os falantes da língua Apinajé, destacando sua mobilidade ao longo da bacia do rio Tocantins. Além das fontes escritas, as referências cartográficas destacam diferentes etnônimos para referir-se ao povo Apinajé. Essa distinção relaciona-se, provavelmente, à compreensão das distintividades dos subgrupos Apinajé: Rôrcôjoire, Côcôjóire e Krinjobrêire. A partir da investigação dos relatórios de presidentes de província e do Ministério da Agricultura, investiga o estabelecimento de uma política indigenista imperial e a inserção dos Apinajé no âmbito das relações capitalistas. Constata-se que os Apinajé mantiveram certo grau de autonomia, pacificando a relação com o mundo não indígena. Na medida em que avançaram as frentes colonizadoras e as epidemias, os Apinajé abandonam as margens do Araguaia e concentram sua população nos territórios mais próximos ao rio Tocantins. No princípio do século XX, sua reduzida população enfrentou a pressão de posseiros sobre suas terras. A partir da análise da documentação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), instalado no território Apinajé na década de 1940, constata-se que as ações da política indigenista se concentraram no atendimento à saúde dos Apinajé, o estabelecimento de atividades produtivas rentáveis à renda indígena e no controle da territorialidade Apinajé. A partir da segunda metade do século XX, com o estabelecimento de políticas desenvolvimentistas, houve um impacto na sua territorialidade a partir da construção da rodovia Transamazônica e do Programa Grande Carajás. Isso levou a um aumento do conflito fundiário na região do Bico do Papagaio e ao confronto final pela demarcação da Terra Indígena, em 1985. A documentação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) demonstra que as influências políticas interferiram na área demarcada, excluindo partes do território ancestral. No século XXI, os Apinajé enfrentaram uma nova onda desenvolvimentista que os levaram a reorganizarem suas estratégias de luta através da Pempxà, associação da União das Aldeias. Por fim, a investigação constata que o panorama da história de longa duração possibilita um olhar dinâmico sobre o território, apontando as conexões entre o tempo dos antigos e o tempo do presente
This research investigates Apinajé history, considering it from a long-term perspective. It is inserted in the field of study of Indigenous History and in the methodological foundations of ethnohistory. The research considers the intrinsic relationship between history and territory for the indigenous people and proposes to observe the formation, the struggle for consolidation and maintenance of their territory. It analyzes the origin stories based on the meanings given to the territory, perceiving them as a form of history writing. The elements of the landscape – petroglyphs, caves, mountains, and rivers – are imbued with historical meaning. The research shows that the Apinajé language has a common origin with the Mẽbêngôkre languages, and that these would be an older split from the Timbira languages. Based on archaeological investigations along the Tocantins River basin, it indicates the presence of a Tupiguarani archaeological tradition in the confluence region of the Araguaia and Tocantins Rivers and analyzes the archaeological evidence linked to the Aratu pottery tradition, identified with the Jê-speaking people. It highlights the need for a diachronic look at the material culture of the Jê people as a way of thinking about long-term indigenous history. Based on an analysis of the written documentation produced by chroniclers between the 17th and 19th centuries, the research seeks to understand the dynamics of the occupation process of the northern Jê in the interfluve and the distinction between the Apinajé language speakers, highlighting their mobility along the Tocantins River basin. In addition to the written sources, the cartographic references highlight different ethnonyms to refer to the Apinajé people. This distinction is probably related to the understanding of the distinctiveness of the Apinajé subgroups: Rôrcôjoire, Côcôjóire, and Krinjobrêire. From the investigation of the reports of the province presidents and the Ministry of Agriculture, it investigates the establishment of an imperial indigenist policy and the insertion of the Apinajé in the sphere of capitalist relations. The Apinajé maintained a certain degree of autonomy and pacified their relationship with the non- indigenous world. As the colonizing fronts and epidemics advanced, the Apinajé abandoned the banks of the Araguaia and concentrated their population in the territories closest to the Tocantins River. At the beginning of the 20th century, their reduced population faced pressure from squatters on their land. From the analysis of the documentation of the Indian Protection Service (SPI), installed in Apinajé territory in the 1940s, it appears that the actions of the indigenist policy focused on health care for the Apinajé, the establishment of productive activities profitable to the indigenous income and the control of Apinajé territoriality. From the second half of the 20th century, with the establishment of developmental policies, there was an impact on their territoriality with the construction of the Transamazon highway and the Grande Carajás Program. This led to an increase in the land conflict in the Bico do Papagaio region and the final confrontation for the demarcation of the Indigenous Land in 1985. Documentation from the National Indian Foundation (FUNAI) shows that political influences interfered with the demarcated area, excluding parts of the ancestral territory. In the 21st century, the Apinajé faced a new wave of development that led them to reorganize their fighting strategies through Pempxà, an association of the Union of Villages. Finally, the research finds that the panorama of long-term history enables a dynamic look at the territory, pointing out the connections between the time of the ancients and the time of the present.
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Nimuendajú foi o primeiro a descrever a história do homem-morcego entre
os Apinajé. Dessa narrativa podemos destacar alguns elementos importantes que nos
auxiliam a refletir sobre a historicidade e territorialidade dos Apinajé. Passo a analisar
alguns aspectos da narrativa. A primeira questão diz respeito à localização geográfica
da caverna do morcego. A caverna dos morcegos (Nhêp kre) está localizada próxima
à lagoa de São Bento. Sobre a localização da morada dos Kupẽ nhêp, Nimuendajú
apresentou a seguinte versão:
No sertão de São Vicente, para as bandas do Araguaia, existe a Serra dos
Morcegos. Há nela uma grande caverna que tem uma entrada em baixo e
em cima, muito alta, uma espécie de janela. Em tempos idos, era ali a
habitação dos Kupen-dyêb, seres de formas humanas, porém, dotados de
asas de morcego.
Nimuendajú descreve que a caverna habitada pelos Kupẽ nhêp estaria
localizada “no sertão de São Vicente, para as bandas do Araguaia”, região
caracterizada pelos cursos de água que deságuam no rio Araguaia. Segundo os
Apinajé, esta caverna existe efetivamente e está localizada às margens do ribeirão São
Martinho, afluente do rio Araguaia, no município de São Bento do Tocantins, a poucos
quilômetros da linha de divisa atual da Terra Indígena (cf. mapa 3). Assim como na
história, ela é caracterizada pela existência de duas aberturas. …